sábado, 29 de maio de 2010

O livro de Romanos: Introdução ao estudo e breve aplicação para hoje. PARTE 2/2

Por Carlos Chagas

A Teologia de Romanos

Por ser talvez o principal livro de Paulo Romanos conta com uma perfeita elaboração teológica já que este livro é uma espécie de suma do pensamento evangelístico de Paulo. Diversos temas e termos são adotados pelo apóstolo. Mas o mais forte da epístola de Romanos talvez seja a justificação pela fé. Em 3.28 se encontra o pensamento que trabalha a salvação fora das obras. Este pensamento sobre salvação se repete em Gálatas e Colossenses.

“Carne” e “Espírito”

Paulo também trabalha a oposição entre “carne” e “Espírito”. Estas duas palavras laboram, para Paulo, uma incessante luta entre si dentro da alma humana. Mas este conflito não é o mesmo que pode ser encontrado na filosofia grega. Não se refere à briga entre matéria e mente e nem entre os elementos físicos e racionais do homem.

A palavra “carne” abordada por Paulo procura se desprover dos conceitos do Antigo Testamento. Vale lembrar que carne no AT possui diversos sentidos como: carne humana, criação de Deus bem como sua fraqueza, mortalidade e natureza humana (Gn 6.12; Is 40.5; Jl 2.28; Sl 78.39). Carne no AT pode se referir ao que simplesmente se conhece como “eu” (Sl 63.1). Contudo Paulo emprega a palavra “carne” (do grego sarx) em Romanos com os seguintes conceitos:

1- Possui sentido de “carne” corporal (2.28) onde a circuncisão literal da carne adota um sentido de circuncisão espiritual do coração;

2- Possui sentido de descendência ou relação humana natural. Enquanto Cristo é mencionado em 1.3 como descendente de Davi segundo a “carne” e quando Abraão é chamado de “nosso pai” segundo a “carne” em 4.1 Paulo também menciona Abraão como sendo pai de todos os que crêem (4.11, 16). Existem os “filhos da carne” e os “filhos da promessa” (9.8);

3- Usa-se “carne” no sentido de humanidade (3.20) quando ele cita a palavra referindo-se à tentativa de justificação por obras da lei;

4- Usa-se “carne” no sentido da natureza humana: (a) Por ela ser fraca (6.19); injusta (8.3; o mesmo de Mt 26.41 usado por Jesus); (b) para falar da natureza humana de Cristo em semelhança de carne pecaminosa (8.3); (c) da velha natureza do cristão onde não há nada de bom (7.18) onde se é escravo da lei do pecado (7.25); carne esta que foi crucificada com Cristo (6.6); (d) e por ser não-regenerada (8.8);

5- Para falar que aqueles que se encontram em Cristo já não podem mais serem guiados por esta “carne”, mas pelo “Espírito” (8.4s, 12s);

6- Relacionada ao pecado e à morte (7.23; 8.2).

A palavra “Espírito” é colocada antagonicamente pelo AT com a palavra “carne” (Is 31.3). Esta palavra está relacionada ao espírito de Deus e ao do homem também. Em Romanos essas 2 palavras estão dispostas antagonicamente uma à outra (8.4, 9). Para Paulo a palavra “Espírito” podia significar:

1- A parte espiritual da constituição humana (1.9);

2- O Espírito de Deus (Espírito Santo) (1.4, 8.11), o qual dá testemunho verdadeiro quando age na consciência humana (9.1) e que santifica (15.16). Este traz amor, paz, poder, alegria e esperança (5.5, 15.30, 14.17, 15.13). Este Espírito comunica vida (8.4, 5, 6, 10), dá liberdade do pecado (6.18, 22); direciona o cristão (8.14); intercede pelos seus (8.26s); é instrumento de santificação e penhor de um futuro predito (Jl 2.28-32).

3- O Espírito supre a vida e intercede pelo seu povo (8.15, 26s);

4- É instrumento de santificação e penhor do futuro (6.23; 8.23).

A Lei em Romanos

A palavra lei ocorre cerca de 70 vezes no livro de Romanos. A palavra Lei (nomos, em grego) pode se referir: Ao Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) (3.21), ou ao AT em sua totalidade (3.19), ou a um princípio (3.27). Para Paulo a Lei era vista como palavra de Deus. Ao se dizer que a Lei era de Moisés era conhecido que na verdade a lei era de Deus e que esta foi passada para Moisés e de Moisés para o povo. Mas a Lei de Deus, segundo Paulo, não era exclusiva do povo de Israel, pois Deus criou a todos para que todos vivam essas leis. Segundo Paulo até mesmo os gentios são indesculpáveis de não seguirem retamente a lei, que é dada através da consciência e da natureza (2.14). A consciência do pecado vem do reconhecimento da própria consciência corrompida.

Para Paulo a Lei deve ser cumprida, seja como ela venha ser revelada (7.12), contudo ninguém deve achar que terá méritos no céu somente porque a guardou. Paulo insiste que a Lei é boa para se ter ordem, mas não vale para justificação e libertação do pecado. Sendo assim, para que a Lei serve? Eis alguns argumentos:

1- Foi dada para ser uma revelação de Deus e de sua vontade: A lei não nasce somente de convicções sociais, mas de base no ser e no caráter de Deus (7.12, 16, 22).

2- Foi dada para o bem estar e a preservação da raça humana: Nas mãos do governo civil a lei serve para impedir e castigar a prática do mal estimulando a prática do bem (13.1-7).

3- Para revelar o pecado e trazer arrependimento e confiança na graça de Deus: Apesar do homem que guarda a lei necessitar de viver por ela (10.5) ninguém será justificado por ela devido ao fracasso em guardá-la perfeitamente (3.20, 23). O homem demonstra ser rebelde para com Deus quando este não cumpre os mandamentos, de modo que vem, pela Lei, o pleno conhecimento do pecado (3.20; 7.7). Sendo assim Paulo suscita a dúvida: Como pode o homem ser justificado por aquilo que o condenou? Se a Lei condenou o homem, como este pode ser salvo por aquela? Paulo responde em outra epístola que esta lei serviu de tutora até que o homem conhecesse plenamente Cristo (Gl 3.24). Sendo assim, agora que Cristo veio, Ele “é o fim da Lei para que todo aquele que tem fé seja justificado” (10.4). Assim, a Lei serviu para mostrar ao homem seu pecado, tendo então a necessidade de fé nas promessas divinas de salvação. Os que são justificados pela fé nEle não estão “debaixo da Lei e, sim, da graça” (6.14).

4- Foi dada para prover orientação para a vida do cristão: Apesar de que quem está em Cristo vivem segundo o Espírito (8.3) as exigências da lei se cumprem nele com divina espontaneidade. A lei serve de parâmetro para a vida cristã. Contudo esta lei só possui sentido quando iluminada na nova lei que é o amor, pois quem ama tem cumprido a lei (13.8-10). Porquanto quem não rouba, não adultera, não cobiça se resume em uma só tese: Ama o próximo. Sendo assim a forma com que Paulo trata o Evangelho não é de forma antinomista (contrária à lei). Pelo contrário. Paulo apenas mostra que a vontade de Deus não está escrita num código externo de leis, e sim na vivência das leis divinas que agora estão no coração do cristão que, em fé, as pratica. E essa prática está maior que a tese da lei (12.1).

Esboço de Romanos

I- Introdução 1.1-17
A. Identificação de Paulo 1.1-7
B. Desejo de Paulo de visitar Roma 1.8-15
C. Resumo do Evangelho 1.16-17
II- Todos Pecaram 1.18 – 3.20
A. Os gentios conhecem Deus, mas o rejeitam 1.18-32
B. Os judeus têm as leis de Deus; mas não são justos 2.1-29
C. Deus é justo para julgar todos os seres humanos 3.1-20
III- Justificação apenas pela fé 3.21 – 5.21
A. Justiça de Deus preservada através da morte de Cristo por nós 3.21-26
B. Justificação apenas pela fé 3.27-31
C. Abraão justificado pela fé, não pelas obras 4.1-25
D. Uma vez justificados pela fé, nós triunfamos mesmo no sofrimento 5.1-11
E. Nós ganhamos a morte através do pecado de Adão, mas a vida eterna mediante a obediência de Cristo 5.12-21
IV. Praticando justiça na vida cristã 6.1 – 8.39
A. Superando o pecado na vida cristã 6.1-23
B. Estamos mortos para o sistema impotente chamado “lei” 7.1-6
C. A lei não pode mais nos dar poder para obedecer 7.7-25
D. Nós cumprimos a justiça de Deus vivendo no poder do Espírito e de acordo com o Espírito 8.1-17
E. Ansiando pela redenção completa 8.18-25
F. Ajuda e segurança na adversidade 8.26-39
V- Deus e Israel 9.1 – 11.36
A. Embora Israel seja infiel, Deus é justo 9.1-33
B. Israel rejeitou o Evangelho de bom grado 10.1-21
C. Agora permanece um remanescente, e algum dia da salvação completa chegará a Israel 11.1-32
D. Louvem a infinita sabedoria de Deus 11.33-36
VI- Aplicações práticas 12.1 – 15.13
A. Apresentem-se como sacrifícios a Deus 12.1-2
B. Uso de dons espirituais 12.3-8
C. Relacionando com cristãos 12.9-13
D. Relacionando com descrentes 12.14-21
E. Relacionando com o governo 13.1-7
F. Alei do amor 13.8-14
G. Tolerância e amor em coisas secundárias 14.1-23
H. Cuidando um do outro 15.1-13
VII- A própria situação de Paulo 15.14-33
A. Seu ministério 15.14-22
B. Seus planos 15.23-33
VIII- Recomendações pessoais 16.1-24
IX- Bênção 16.25-27

A epístola de Romanos para a atualidade

Ainda hoje muito se discute sobre qual seria o principal tema da epístola de Romanos. Para os reformadores foi destacada a justificação pela fé, que vai dos capítulos 1 – 4. Outros estudiosos como Albert Schweitzer achava que a questão da justificação pela fé não passava de doutrina de combate de Paulo contra os judaizantes, e que o verdadeiro teor de ensino de Romanos se encontra em 6 – 8, onde se tem a união com Cristo e a obra do Espírito Santo. Outros defendem que o centro de Romanos é sobre a história da salvação que está nos capítulos 9 – 11, caso do estudioso Krister Stendahl. Outros já dizem que a exortação à prática da unidade, em 14.1 – 15.13 é a essência da carta.

Fato é que Romanos não possui um tema único. Todavia, se fosse necessário destacar uma palavra-chave do livro com certeza seria a palavra “Evangelho”. É esta palavra que vem destacada em 1.16-17. Diante desta perícope Paulo inicia seu discurso onde se concentra toda a sua teologia cristã, a qual é o recheio de todas as suas cartas. Romanos é, portanto, a exposição que Paulo faz de seu Evangelho. Então nasce a pergunta: O Evangelho que tem sido pregado nos dias atuais tem tido tanta coerência como o Evangelho pregado por Paulo como é visto na epístola de Romanos? Será que a pregação atual tem combatido temas pertinentes, nocivos, radicais, relevantes como o foi em Romanos?

As palavras de Romanos estão predispostas ao contexto do século I. E é neste contexto que existe um elemento muito importante a ser destacado: A natureza da continuidade entre a primeira e a segunda “palavra” de Deus e entre o povo daquela primeira palavra, Israel, e o povo da segunda palavra, a igreja. Diante disso nascem dois pontos para reflexão: (1) Sendo a igreja o povo da segunda palavra como esta tem se compreendido como tal? Seria esta igreja um ajunte de pessoas salvas, ou uma organização salvadora? A salvação de Romanos está intimamente ligada à fé. E a salvação da igreja de hoje? A salvação atual estaria ligada somente à fé ou a observância de ritos, sacramentos e regras? E (2) a igreja deve ser compreendida como organismo (algo que cresce involuntariamente) ou organização (que adere medidas para o próprio crescimento)? Seria certo a igreja se ver como separada de Israel no quesito salvação? O fato é que a palavra Israel em Romanos possui dois sentidos: Povo e qualidade da palavra (Israel = Vencedor). Teria Deus sentimentos diferentes para dois povos? Amaria Deus dois povos de formas diferentes?

Por fim, devem ser observadas a atenção e zelo que Paulo utiliza o Antigo Testamento para escrever seus textos, que mais tarde comporiam o Novo Testamento. Paulo deixa clara a importância da maneira como de expressa a relação entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento, entre a lei e o Evangelho, Israel e a igreja – o grau de continuidade e descontinuidade – a qual é crucial para a construção de qualquer teologia cristã. O que se vê nos dias atuais são construções de teologias cristãs, nas quais podem ser destacadas disparidades entre si, o que promovem desequilíbrio na compreensão bíblica como um todo. Muitas teologias cristãs elaboradas no Brasil e no mundo têm tido essa falta de respeito entre os dois Testamentos. Nas epístolas de Paulo isso não é constatado. Fica aqui então o apelo aos líderes cristãos que repensem suas teologias aplicadas: Que estas não venham a ferir o pleno Evangelho, o qual Paulo pregou até sua morte.

Referências Bibliográficas

BRUCE, Frederick Fyvie. Romanos: Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2005.

CARSON, D.A., MOO, J., MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.

BÍBLIA SAGRADA Plenitude, Edição de Estudos.

Para ler a PARTE 1/2 clique aqui.

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